Ómãe, tu não deites as tampas fora! Olha que há pessoas que precisam de cadeiras de rodas!"
O pedido é mais que um pedido. É uma súplica. Uma exigência feita por vezes de modo dramático e teatral. E espalhou-se por todo o País. Três anos depois de iniciado o projecto de converter tampas de plástico em cadeiras de rodas, há milhares de crianças e jovens que acumulam tampas como quem colecciona cromos. A diferença está no propósito. Os miúdos não juntam tampas para engrossar uma qualquer caderneta. Os miúdos sabem que a sua recolha ajuda a dar material ortopédico a quem precisa.
Tudo começou com uma dúzia ou duas de tampas. E uma enfermeira ligada aos cuidados continuados cheia de ganas de ajudar os outros, sobretudo por conhecer de cor as necessidades nunca completamente satisfeitas dos doentes. O seu nome é Guadalupe Jacinto. E o começo do projecto que despertou miúdos e graúdos para a solidariedade foi tão simples quanto isto: "Estava a tirar a licenciatura e levava sempre comida de casa: a garrafinha do iogurte, a garrafa de água... Como não conseguia andar com o lixo todo para reciclar, guardava ao menos as tampas." Foi assim que na mala da enfermeira começaram a morar algumas dezenas de pequenos círculos de plástico: "Um dia pus-me a olhar para as tampas e pensei: isto deve dar dinheiro. E se eu conseguisse juntar muitas, muitas tampas e depois as vendesse, fazendo reverter o dinheiro para conseguir cadeiras de rodas?"
A ideia nasceu em 2003. Sem saber se daria certo, Guadalupe Jacinto deitou mãos à obra. Falou com as colegas do Hospital Garcia de Orta, em Almada, e pediu-lhes que começassem a guardar tampas. Depois, começou a contactar empresas de recolha de resíduos que aderissem à ideia. E conseguiu. A Amarsul foi o primeiro sistema de recolha de resíduos sólidos urbanos a aderir ao projecto: "Ficou combinado que eles receberiam as tampas, enviariam para os recicladores e reservariam o dinheiro respectivo para comprar material ortopédico." A enfermeira Guadalupe Jacinto determinou, desde o início, que o dinheiro nunca passaria por si. "Não queria que houvesse qualquer mal-entendido sobre as minhas intenções."
Pouco tempo depois de ter lançado a ideia (e espalhado alguns cartazes apenas na Margem Sul, onde vive), Guadalupe foi surpreendida pela proporção que o projecto tinha tomado: "Um dia, não muito depois de ter começado isto, parei numa bomba de gasolina em Santarém e vi os meus cartazes afixados. Depois, soube que já tinham chegado às Ilhas. E que alguns professores, a título individual, tinham colocado os cartazes nas escolas e promoviam concursos, para ver qual a turma que conseguia acumular mais tampas."
"Tou sim, é da Tampa Amiga?"
Estava lançado o fenómeno. Crianças pequenas, jovens e adultos começaram a passar a palavra. Aqui e ali começou a falar-se da estranha recolha. Muitos pais ficaram a saber da iniciativa pelos insistentes pedidos dos filhos: "Guarda as tampas!"
Consciente de que a criação ultrapassara o criador e incapaz de dar resposta a todos os que a procuravam no Hospital Garcia de Orta, Guadalupe Jacinto decidiu criar a Associação Tampa Amiga. A página na Internet (www.tampinhas.org), dava conta de todos os passos do processo, bem como o nome das entidades que, sucessivamente, se foram aliando à ideia (escolas, juntas de freguesia, bombeiros, empresas particulares, etc.) e se foram oferecendo para receber e armazenar as tampas, transportando-as de seguida para os sistemas de recolha de resíduos aderentes. Hoje, já são 243 os locais de entrega, por todo o país.
Tampas chegam pelo correio
Em 2004, a primeira campanha conseguiu recolher 7,8 toneladas de tampas, que renderam 16 cadeiras de rodas e uma cama articulada. Este ano já recolheram 8,12 toneladas, entregaram mais quatro cadeiras e estão na iminência de fazer várias entregas. Mas a ideia de Guadalupe contagiou mais gente e fugiu-lhe do controlo. Há material ortopédico a ser entregue directamente pelos sistemas de recolha de resíduos. De modo que nem ela já sabe ao certo quantas pessoas foram beneficiadas.
O conselho que Guadalupe dá a quem precisa de material ortopédico é que se associe a uma instituição: "Nós preferimos entregar o material às instituições. Porque sabemos que, assim, quando a pessoa já não precisar, a instituição canaliza esse material para outra necessitada. De contrário, não sabemos que uso é dado às cadeiras de rodas quando os doentes, por morte ou por cura, deixam de precisar delas."
A febre das tampas é tão grande que já começou a dar dores de cabeça. Ana Loureiro, directora de Comunicação, Imagem e Documentação da Valorsul (um sistema de recolha de resíduos, em Lisboa), elogia a ideia mas aponta alguns problemas: "Às vezes recebemos toneladas de tampas e nem sequer sabemos se o reciclador as vai comprar. As tampas são muito pequenas e não são feitas de um material só. Isso, do ponto de vista da reciclagem, é complicado." Além disso, explica Ana Loureiro, o valor que se tira das tampas é ridículo: "Uma carga de oito toneladas dará uns 5000 euros. Consegue imaginar quantas tampas são precisas para chegar às oito toneladas?"
Para combater o fenómeno, que superou qualquer expectativa, a Valorsul está a preparar uma campanha que visa atribuir dinheiro para causas sociais, não em troca de tampas, mas sim de uma reciclagem feita de forma correcta.
Diário Noticias
O pedido é mais que um pedido. É uma súplica. Uma exigência feita por vezes de modo dramático e teatral. E espalhou-se por todo o País. Três anos depois de iniciado o projecto de converter tampas de plástico em cadeiras de rodas, há milhares de crianças e jovens que acumulam tampas como quem colecciona cromos. A diferença está no propósito. Os miúdos não juntam tampas para engrossar uma qualquer caderneta. Os miúdos sabem que a sua recolha ajuda a dar material ortopédico a quem precisa.
Tudo começou com uma dúzia ou duas de tampas. E uma enfermeira ligada aos cuidados continuados cheia de ganas de ajudar os outros, sobretudo por conhecer de cor as necessidades nunca completamente satisfeitas dos doentes. O seu nome é Guadalupe Jacinto. E o começo do projecto que despertou miúdos e graúdos para a solidariedade foi tão simples quanto isto: "Estava a tirar a licenciatura e levava sempre comida de casa: a garrafinha do iogurte, a garrafa de água... Como não conseguia andar com o lixo todo para reciclar, guardava ao menos as tampas." Foi assim que na mala da enfermeira começaram a morar algumas dezenas de pequenos círculos de plástico: "Um dia pus-me a olhar para as tampas e pensei: isto deve dar dinheiro. E se eu conseguisse juntar muitas, muitas tampas e depois as vendesse, fazendo reverter o dinheiro para conseguir cadeiras de rodas?"
A ideia nasceu em 2003. Sem saber se daria certo, Guadalupe Jacinto deitou mãos à obra. Falou com as colegas do Hospital Garcia de Orta, em Almada, e pediu-lhes que começassem a guardar tampas. Depois, começou a contactar empresas de recolha de resíduos que aderissem à ideia. E conseguiu. A Amarsul foi o primeiro sistema de recolha de resíduos sólidos urbanos a aderir ao projecto: "Ficou combinado que eles receberiam as tampas, enviariam para os recicladores e reservariam o dinheiro respectivo para comprar material ortopédico." A enfermeira Guadalupe Jacinto determinou, desde o início, que o dinheiro nunca passaria por si. "Não queria que houvesse qualquer mal-entendido sobre as minhas intenções."
Pouco tempo depois de ter lançado a ideia (e espalhado alguns cartazes apenas na Margem Sul, onde vive), Guadalupe foi surpreendida pela proporção que o projecto tinha tomado: "Um dia, não muito depois de ter começado isto, parei numa bomba de gasolina em Santarém e vi os meus cartazes afixados. Depois, soube que já tinham chegado às Ilhas. E que alguns professores, a título individual, tinham colocado os cartazes nas escolas e promoviam concursos, para ver qual a turma que conseguia acumular mais tampas."
"Tou sim, é da Tampa Amiga?"
Estava lançado o fenómeno. Crianças pequenas, jovens e adultos começaram a passar a palavra. Aqui e ali começou a falar-se da estranha recolha. Muitos pais ficaram a saber da iniciativa pelos insistentes pedidos dos filhos: "Guarda as tampas!"
Consciente de que a criação ultrapassara o criador e incapaz de dar resposta a todos os que a procuravam no Hospital Garcia de Orta, Guadalupe Jacinto decidiu criar a Associação Tampa Amiga. A página na Internet (www.tampinhas.org), dava conta de todos os passos do processo, bem como o nome das entidades que, sucessivamente, se foram aliando à ideia (escolas, juntas de freguesia, bombeiros, empresas particulares, etc.) e se foram oferecendo para receber e armazenar as tampas, transportando-as de seguida para os sistemas de recolha de resíduos aderentes. Hoje, já são 243 os locais de entrega, por todo o país.
Tampas chegam pelo correio
Em 2004, a primeira campanha conseguiu recolher 7,8 toneladas de tampas, que renderam 16 cadeiras de rodas e uma cama articulada. Este ano já recolheram 8,12 toneladas, entregaram mais quatro cadeiras e estão na iminência de fazer várias entregas. Mas a ideia de Guadalupe contagiou mais gente e fugiu-lhe do controlo. Há material ortopédico a ser entregue directamente pelos sistemas de recolha de resíduos. De modo que nem ela já sabe ao certo quantas pessoas foram beneficiadas.
O conselho que Guadalupe dá a quem precisa de material ortopédico é que se associe a uma instituição: "Nós preferimos entregar o material às instituições. Porque sabemos que, assim, quando a pessoa já não precisar, a instituição canaliza esse material para outra necessitada. De contrário, não sabemos que uso é dado às cadeiras de rodas quando os doentes, por morte ou por cura, deixam de precisar delas."
A febre das tampas é tão grande que já começou a dar dores de cabeça. Ana Loureiro, directora de Comunicação, Imagem e Documentação da Valorsul (um sistema de recolha de resíduos, em Lisboa), elogia a ideia mas aponta alguns problemas: "Às vezes recebemos toneladas de tampas e nem sequer sabemos se o reciclador as vai comprar. As tampas são muito pequenas e não são feitas de um material só. Isso, do ponto de vista da reciclagem, é complicado." Além disso, explica Ana Loureiro, o valor que se tira das tampas é ridículo: "Uma carga de oito toneladas dará uns 5000 euros. Consegue imaginar quantas tampas são precisas para chegar às oito toneladas?"
Para combater o fenómeno, que superou qualquer expectativa, a Valorsul está a preparar uma campanha que visa atribuir dinheiro para causas sociais, não em troca de tampas, mas sim de uma reciclagem feita de forma correcta.
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